À noite, me exorcizo. Sozinho, calmo e confiante de que sou mais glória do quem que me habita em minhas fendas e buracos escuros de medo e solidão. Peço às divindades e aos orixás não sorte. A sorte é acaso demais para uma vida que caminha por areias de rolar-dados e girar-roletas de felicidade. Quero mais dois minutos de lucidez para ser capaz de sentir a luz do sol sem precisar fechar os olhos e quero a compaixão de quem olha por mim. Compaixão de quem lida com algo mais frágil que um humano. Atravessa despido por uma nevasca, atrás de que? É tanto vento, tanto gelo, tanto frio que ninguém jamais veria além da intempérie, a bonança.
Até ontem eu me desfiz em sangue para você beber, vampiro de mim e tão somente eu. Esse sumo tão doce que te enjoa no fundo da alma vã e das palavras. Se contemplava o teu rosto a vomitar em mim tudo o que sou, tentei fazer-me mais saboroso, de modo a ser o melhor banquete de teu mundo. Era o que eu queria. Já que não teria o seu amor, que tivesse os seus dentes cravados em meu pescoço, a sua luxúria sombria a me corroer as veias, tóxica – e indescupavelmente deliciosa.
Tinha medo de me tornar vampiro de ti.
E então parou. O sangue acabou? – finalmente.
Agora voa atrás de novo sangue. O que sou se resume em minha carcaça flácida de vontade e meus farrapos sujos que já não me servem. E não há desespero em minha pele. Recolho os cacos que sou, olho o mais alto que meu arquétipo de esqueleto permite sustentar e, num espaço triste de sábia loucura, vou atrás do que me tomaram: meu sangue. Cada gota, cada vermelho. Mas não quero do mesmo. Quero sangue novo, mesmo que para isso eu me vista de vampiro de outros, eu me vista de você! Quero sangue novo para ser à prova de tudo que me fez sangrar. E um dia, vampiro que voa e me abandona, um dia eu te amarei por ter me feito fênix de sangue. Mal saberia eu que veria toda a plenitude de tua humanidade e me descobriria surpreso ao saber que ela se faz tão vasta a ponto de me vestir da cabeça aos pés melhor do que a ti.
Então fecho os olhos e vejo que o que me espera depois da nevasca crucis é um cálice de vinho tinto.
- A última gota. Um parto tão limpo, tão fácil e sem sangue. Não há mais em mim, acho. Veremos se haverá um dia. É o filho mais despido de tudo e limpo que já nasceu. Tanto que se parece comigo mesmo. Espero que entendam. Talvez demore a surgir outro texto, embarco em viagem em menos de 4 dias. Mas a demora sempre traz consigo novas e belas inspirações e não será diferente dessa vez. Muito obrigado por tudo, leitores!