terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Conde

            À noite, me exorcizo. Sozinho, calmo e confiante de que sou mais glória do quem que me habita em minhas fendas e buracos escuros de medo e solidão. Peço às divindades e aos orixás não sorte. A sorte é acaso demais para uma vida que caminha por areias de rolar-dados e girar-roletas de felicidade. Quero mais dois minutos de lucidez para ser capaz de sentir a luz do sol sem precisar fechar os olhos e quero a compaixão de quem olha por mim. Compaixão de quem lida com algo mais frágil que um humano. Atravessa despido por uma nevasca, atrás de que? É tanto vento, tanto gelo, tanto frio que ninguém jamais veria além da intempérie, a bonança.
            Até ontem eu me desfiz em sangue para você beber, vampiro de mim e tão somente eu. Esse sumo tão doce que te enjoa no fundo da alma vã e das palavras. Se contemplava o teu rosto a vomitar em mim tudo o que sou, tentei fazer-me mais saboroso, de modo a ser o melhor banquete de teu mundo. Era o que eu queria. Já que não teria o seu amor, que tivesse os seus dentes cravados em meu pescoço, a sua luxúria sombria a me corroer as veias, tóxica – e indescupavelmente deliciosa.
            Tinha medo de me tornar vampiro de ti.
            E então parou. O sangue acabou? – finalmente.
            Agora voa atrás de novo sangue. O que sou se resume em minha carcaça flácida de vontade e meus farrapos sujos que já não me servem. E não há desespero em minha pele. Recolho os cacos que sou, olho o mais alto que meu arquétipo de esqueleto permite sustentar e, num espaço triste de sábia loucura, vou atrás do que me tomaram: meu sangue. Cada gota, cada vermelho. Mas não quero do mesmo. Quero sangue novo, mesmo que para isso eu me vista de vampiro de outros, eu me vista de você! Quero sangue novo para ser à prova de tudo que me fez sangrar. E um dia, vampiro que voa e me abandona, um dia eu te amarei por ter me feito fênix de sangue. Mal saberia eu que veria toda a plenitude de tua humanidade e me descobriria surpreso ao saber que ela se faz tão vasta a ponto de me vestir da cabeça aos pés melhor do que a ti.
            Então fecho os olhos e vejo que o que me espera depois da nevasca crucis é um cálice de vinho tinto.

- A última gota. Um parto tão limpo, tão fácil e sem sangue. Não há mais em mim, acho. Veremos se haverá um dia. É o filho mais despido de tudo e limpo que já nasceu. Tanto que se parece comigo mesmo. Espero que entendam. Talvez demore a surgir outro texto, embarco em viagem em menos de 4 dias. Mas a demora sempre traz consigo novas e belas inspirações e não será diferente dessa vez. Muito obrigado por tudo, leitores!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O erro

            Hoje eu não fugi de mim, apesar de que foi me dito que, só assim, eu me encontraria.
            Hoje eu não fugi de mim, eu me persegui em cada instante incansavelmente cansativo que ama os ponteiros do relógio. Esse eu que me foge, se tem nome, faz-se tão furtivo que seu nome ficou na boca de alguma esquina. Já não mais sinto se ele está aqui ou se já foi. Talvez nunca tenha estado. É que está no âmago das intenções e dos gestos, eu só queria uma companhia, a mais dentro de mim possível. E, se feita de costela minha, traria consigo um brilho todo único, todo o brilho dos meus olhos nos olhos da alma dela. Ah, mas me adiantaria algo assim encomendado dos meus sonhos se não foi feito para mim?
            Não me julguem. Eu sei que, debaixo dos cílios, trago o olhar crítico dos infelizes, mas, se o faço, é porque não quero mais quimeras no meu quintal. E, se eu sei o quanto isso pode ser defensivo, também só sei eu o quanto isso destrói a pouca humanidade que mantêm meus ossos de pé. Porque as quimeras têm sim a sua beleza, que olhar crítico nenhum verá, na imperfeição de suas formas. E eu bem sei que optei pelo bucolismo que jaz nos gestos contidos, porém seguros.
            E eu não quero que os outros sejam como eu e, se não o podem, que sejam então quimeras a voar e a rastejar por entre meus dedos, sob o meu olhar. Só não sei se o quero porque abomino tanto o que há em mim que não desejo para ninguém ou porque eu amo tanto o que há em mim que eu não desejo para ninguém.
            Se eu os olho com olhos de fulminação, a mim o olhar mata antes de visível. A vergonha não desce com as lágrimas, permanece viva entre as pálpebras e em todo o vão imenso, girando e girando risonha, encara-me através do reflexo do espelho que se reflete em meus olhos. Ela me acha bonito, porém miserável. Ela me chama de miserável. E eu enxugo as lágrimas e sorrio, porque ela está certa.
            Que anda a fazer a vergonha de teus olhos senão o trabalho dela?
            A mim, perturba-me tanto a ideia de errar na respiração, de ser errado, que não mais me permito ser quimera. Mas não me ensinei a ver-me com a perfeição de não ser quimera, então, diante dos meus olhos, eu ainda sou. E diante de vossos olhos, por usar essas vestes estranhas, eu me faço assim. Porque, na busca pelo ser, passa-se também pelo não ser. O morrer.
           
            -

            A água tem mãos de tocar os dedos como ninguém. E ela os toca e eu bocejo. Bocejo no alto das nuvens para as trevas que vivem acima e abaixo de mim. Porque já passou, tudo passou de novo e passou mais uma vez. Agora são outros seres, outros quereres e outras quimeras. Para olhar com os olhos fechados, de dentro das trevas e, mais uma vez, bocejar à sua passagem.


- Não lembro bem como saiu esse texto. Mas saiu sem muita força. Espero que gostem, soa como uma confissão e talvez seja uma. Obrigado pelas visitas e pelo carinho.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Carta de suicídio por Y.S.


            Querido: sinto a certeza de que voltarei a enlouquecer mais vívida do que nunca, suas unhas arranhando cada terço de minha pele, numa agonia e angústia só não maiores que minha dor de senti-las. Sinto que nós dois não poderemos passar por mais desses momentos difíceis, nos quais você arrisca a maior beleza da sua lucidez para me manter ereto na minha lúcida corda bamba. E eu sei que, se eu cair mais uma vez, eu não poderei me recuperar.
            Eu comecei a ouvir vozes, a ver alucinações, a sentir calafrios cortantes, todos me acusando dos mesmos pecados que você, tão nobremente, já perdoou. E eles não mais me permitem total concentração na minha arte, que nos mantinha afastados, mas íntegros, seguros em nossos casulos e distâncias.
            Então estou fazendo o que parece ser o melhor a fazer: quebrar o meu casulo e não mais esperar que ele apodreça ao lento pesar dos tempos. Pular dessa corda bamba rumo ao abismo e não mais esperar que um sopro de acaso me derrube numa hora, talvez, inapropriada. É que não temos tempo porque nunca demos tempo. Então sejamos rápidos.
            Você me deu a maior felicidade possível, não aquela que nunca acaba, mas a que sempre começou. Você foi, em todos os sentidos, mais do que qualquer outro poderia ser. E mais do que ser, você quis ser mais, quis ir além. Além até de si.
            Sei que estou arruinando egoisticamente a sua vida – veja pelos muitos “minhas” no começo dessa carta. Você estava certo quanto ao meu egoísmo e, talvez, eu esteja fazendo isso porque seja mais fácil para mim e não para nós. Julgar a mim mesmo numa hora dessas é de um alívio que eu não poderia supor, deixar pesares e monstros num pedaço de papel como este, que não irá comigo depois que eu –
            Sei que estou arruinando a sua vida e que, sem mim, poderá voltar a trabalhar. E voltará. Eu sei. E isso me conforta e me faz sentir-me mais certo diante disto que faço. Veja só, não consigo sequer escrever adequadamente, como a ocasião propõe, logo isso que fui dito fazer tão bem. Sempre enfadonho e cíclico e delongante, deve ser uma tortura para você me ler agora, tortura pior do que me ver depois que eu –
            O que quero dizer é que eu devo a você toda a minha felicidade, aquela escondida nas minhas brechas de sanidade e que eu mal deixava transparecer em sorrisos – e nem sei ao certo porque fazia isso. Você tem sido inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom durante todos esses anos, com uma devoção tamanha que me faz sentir vergonha de mim mesmo agora.
            Tudo está acabado para mim exceto a certeza da sua bondade. E essa deve ser a única certeza viva desse mundo.
            Tomei essa decisão do momento em que vi que seu trabalho estava afetado por minha causa. Não podia continuar mutilando a sua alegria de viver e, para que isso se fizesse possível, queria ter terminado isso de forma menos dramática e dolorosa, mas não houve como. Queria que não houvesse cartas e eu simplesmente tivesse desaparecido no ar que ainda respirava e nas memórias que você respirava, mas ainda não era feito de inexistir. Queria ter pedido desculpas, mas que adiantaria tê-las pedido quando o que fiz era a única opção que tinha?
            Eu não creio que duas pessoas possam ser mais felizes do que nós dois fomos.

- Quem viu "As Horas" sabe que a base desse texto é a carta de suicídio de Virgínia Woolf no começo do filme, que eu achei simples porém fantástica. Deu vontade de trabalhar em cima dela e saiu esse filho. Espero que gostem.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Não quero esse copo

            Não sei o que quero e isso que ando querendo eu já nem sei mais o que é. Desconheço a forma mutável que já não é mais, pois passou. Desconhecimento tão fulminante que me faz querer não querê-lo mais. Pronto, já não quero e parece até que nunca quis, em suas loucas inquerências e incoerências. Deve ser aí onde jaz o saber de se querer as coisas: querer é para desquerer no momento seguinte, talvez querer no momento seguinte a este e, depois, não querer mais. Para o bem da saúde, é melhor que não se queira uma coisa mais do que duas vezes. Mas quem já um dia soube disso com o coração?
            Então o que fazer se eu quiser querer de novo?
            Talvez eu deva querer o que todos querem, mesmo que o desquerido seja o que eu mais quero. Que mal há em querer querer o sol?
            Quisera eu entender essas querências. Ou talvez não queira – para quê entendê-las se, de tão passageiras que são, não se fazem entendidas por ninguém? Egoístas! Apontam-nos o leste como o quem aponta o norte, com suas existências tão breves e vívidas que chegam a roçar meus poros. Vestem-se de objetivo único e depois somem – é um copo cheio que caiu, quebrou-se em cristais e espalhou seu conteúdo no ventre do piso, com fragmentos de consciência e poeira. Não dá para beber sem se cortar. Não dá para pegar nas mãos sem se cortar. Não é possível sequer olhar sem se sentir cortado. É querência derramada. Resta virar as costas, pedir outro copo, bebericar de pouco em pouco e tomar cuidado para não deixar cair no chão concreto de realidades.
É o abandono no meio de um caminho que começou a ser andado. E abrir atalhos entre essas estradas é tão martirizante que quero deixar que outro querer faça isso por mim, me guie cego para depois me perder. É isso: entre atalhos e querências, quero me perder por culpa de outrem, até mesmo de uma querenciazinha inocente. Não quero a responsabilidade de me perder por mim mesmo.
É porque não quero ver meu copo cair no meu chão frio, o conteúdo, meu sangue, espalhado por entre cacos de felicidade. E essa é uma querência que eu nunca quis e não quero que ninguém queira para mim.
Ah, estou farto de querer o impossível!


- Aí um filho diferente dos meus filhos "convencionais" (pelo menos eu o vejo assim). Não tenho nem marcadores onde colocá-lo. Nasceu tão espontâneo que foi rápido. Um rápido gostoso. Espero que gostem também. Obrigado a todos que me apoiam, sem vocês eu não estaria aqui, de verdade.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Última noite de núpcias

            Como a comida com os dentes, como a colher com os lábios, como o prato com os dedos, como a mesa com os cotovelos, como os convidados com os olhos agitados e pesados. Como a agonia com o agito dos pés, como as horas com o tique-taque das minhas unhas, como o silêncio com mais silêncio, como a noite com o relógio, como a vida com o relógio.
            Só não como o constrangimento coletivo. Duro de mastigar, grande de engolir, deixo-o à mesa para alguém com mais fome. E parto para o quarto. Um parto que não dói. É fluido, é vasto, é fácil, como uma assombração.
            Lá a noite é quem me come.
            A noite me abocanha com sua boca de frio, morde meus sonhos com seus dentes de escuridão até virarem uma pasta crua e pungente que me anestesia – a qual eu chamo de dor. Ela me lambe com sua língua de vento cinza e me engole com sua garganta de pesadelo. Lá dentro de seu estômago ela põe Morfeu a dançar uma dança entediante e cansativa.
            E quando eu bocejo e pisco, no instante em que pisco, a noite avança e toma para si a minha flor rósea, com sua luxúria de lua vagabunda.
E ela arranca as pétalas da flor com uma violência que sangra um sangue prateado como seus olhos de supernova. Dói, mas alivia à medida que o sangue se esvai com minha angústia, minha timidez, minha melancolia de eclipse. E foi exatamente isso que fomos. Por um segundo fomos eu e a noite eclipse. Um preenche o vazio do outro. Sobrepostos, misturados, satisfeitos e completos.
E passou.
Tão rápido e intenso quanto eu pudesse notá-lo em mim, a me encher de alma em todos os poros. Um esvaziamento seguido de um preenchimento tão súbitos em suas curtas vidas que me deixaram suspenso no ar frio. Imóvel. Invisível. Eu comia vagarosamente, saboreava aquele sonho com todo o meu corpo, meu corpo de astro vago e bêbado, cometa esbranquiçado. Meu corpo de amor, inteiramente amor. Inteiro do amor mais falso, frívolo e efêmero do qual aquele amante que me estuprava era digno. Estuprava-me no meu próprio santuário, com sua vaidade ousada de astro-rei. Rei de nada.
Deveria dormir, mas o dia de ontem se projeta no céu com o mesmo desespero de anteontem. Aquele desespero de ser novo em qualquer aspecto – simplesmente pela razão de ser novo – que me enfadonha venenosamente. A noite corre da minha cama, mas sussurra com sua voz de estrela d’alva que voltará na outra noite. Voltará outra noite? Duvido.
Dei risada. Porque, quando ela voltar, encontrará todas as minhas portas e janelas trancadas em luz de luminária. Pois, à parte dos astros, das noites, dos dias e dos dentes, essa foi a minha última noite de núpcias com a noite.

- Lá estava eu a ler versos de Neruda e a "assistir" coisa qualquer na televisão e esse texto começou a brotar na cabeça. Quase exatamente do jeito que está aí em cima. Não sei de onde veio ou pra onde vai. Talvez seja tão interior que se faz irreconhecível para mim. Mas é filho e aqui ele está na maternidade. Beijos para vocês que me visitam nesse meu hospital com tanto carinho!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Confissão


            Meu querido amor, meu amargo amor. Aquele que jamais fora tocado, aquele que ninguém viu, ninguém tinha olhos de ver dentro. Seguro a flutuar acima das cabeças dos picos, inseguro no seu ritmo flutuantemente certo das coisas tolas. Meu querido amor, você esqueceu o copo de alegria com quem brindamos aquele dia, aquelas tardes, aquela cama, aquele jogo vazio. Você esqueceu suas vestes de elfo leve, livre, leve-as daqui para não terdes de andar nu pelos vastos campos das redondezas desperdiçando o teu mel.
            Meu querido amor, meu coração não aprendeu nada com a tua liberdade, ele ainda se amarra a certos pilares milenares dos quais não ouso soltá-lo. Meus olhos não aprenderam a se fechar quando você sorri e, por isso, eles sofrem com o parto doloroso da indiferença gritante que fingem. Aliás, fingir tornou-se o meu único último recurso válido e, quando o fiz, fui vil, mas só o fiz por fazer-me selvagemente instintivo e instintivamente covarde.
            Não sei ao certo porque te confesso essas coisas, meu querido amor. Vejo-te ir ao porto embarcar em outros muitos veleiros, todos sem rumo algum. Pois foi na minha caravela, que tinha rumo certo, onde naufragaste. Mas não estás morto, jamais estiveste, tens as sete vidas de um gato vezes setenta e soubeste nadar para a superfície onde o teu vento brisa e a minha água para.
            Então voa, meu querido amor, vai até onde o céu te alcançar! Mas lembra-te de voltar para ver os mortais que ainda o amam. Sem gaiolas de ouro, cante para mim aquela música que você me fez... Quando nos casamos.

- Demorei, eu sei. Mas cá estou. Escrevi muito esses dias, boa parte dos textos incompletos. Desabafos, confissões. Como essa aí. Por isso não se surpreendam ou se zanguem se vierem "Confissão II", "Confissão III", é só questão de eu achá-los maduros o suficiente. Maria Bethânia tem mais que um dedo nesse texto, aliás é ela quem tem me posto para dormir. Quem quiser tentar não se arrependerá. Obrigado a todos que leem!