sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Túmulo de vagalumes

            Por que os vagalumes são tão pequenos?
            O vagalume talvez nasceu do desejo mais puro e ingênuo que já acometeu um ser: ser estrela. Na sua pequenez, tenta alçar a imensidão dos astros, a abóboda do céu, pelo voo, confuso e difícil. Tenta chegar a seus irmãos maiores, seus deuses, os vagalumes das galáxias. Tenta seguir o que seu minúsculo e frágil porém bravo coração lhe pede.
            Por que os vagalumes são tão frágeis?
            Mas há um ponto em que não se voa mais para cima. As asas do vagalume não são de anjos e, a ele, não foi dado o direito de sonhar com algo mais alto que um fio de capim. E, puxado pela vil gravidade dos astros-deuses, desce em trêmula e cortante espiral. Para cair no chão, morto. Porque os vagalumes são frágeis, feitos de pó de estrela soprado na alma de um inseto. Brilho e simplicidade. Nasceram para cair, mas não foram feitos para a dureza do chão. Antes de, sequer, pousarem as patinhas na terra, já estão mortos do desgosto de ver o sonho de ser Deus sumir na noite.
            Contudo, de noite, em meio ao balé dos pequeninos, há como saber quem é estrela e quem é vagalume?
            Eu lembro que tentamos, uma vez, pegar alguns para iluminar o nosso quarto, nossas mentes. E funcionou. Enquanto as estrelas brilhavam altivas para o mundo, os vagalumes brilhavam para o nosso mundo. Eram nossas humildes estrelas, eram eles quem nos faziam companhia.
            Por que os vagalumes morrem tão rápido?
            Então eu olhei para o pote de onde eles vieram e vi que havia muitos mortos. Do pânico da prisão. A verdade é que quando se captura uma estrela, se mata. Seu brilho é absorvido pelas paredes da cela, sobrando uma casca sem alma. Só os vagalumes mais insetos e menos estrelas sobreviveram. Só os vagalumes mais feios iluminavam agora o quarto, com a luz artificial dos fantasmas. E, para nós, bastava o espetáculo do grotesco. Nós havíamos matado o presente que a dama da noite permitiu somente ver e nunca tocar. E, agora, assistíamos perplexos ao funeral dos pequenos pirilampos. Maravilhados. Que tipo de monstro se maravilha com o choro sufocado dos invisíveis, com um funeral? Que tipo de diabo se apraz com o próprio funeral?
            Afinal, que somos nós, senão os pirilampos que precisam saber que pertencem a algum lugar? Que precisam sentir que pertencem a alguém?
            E fui sozinho, sob o julgo olhar da dama da noite, zangada com a morte de seus filhos. Dar-lhes um enterro digno levou-me ao lugar mais triste que eu já vi: o cemitério de vagalumes. Também conhecido como cemitério de sonhos, ou limbo. Um lugar na floresta qualquer, velado por estáticos pirilampos brancos. Mas não houve como sepultá-los. O vento levou seus leves cadáveres para o alto. Para os deuses. Teriam os seres-estrela finalmente virado estrelas? É necessário morrer para alcançar o sonho? Seria no cemitério de vagalumes, cemitério de sonhos, onde os sonhos nascem? Talvez o deus-vento tenha asas maiores que as dos anjos, onde caibam todas as almas vivas dos pirilampos.
            Descobri, então, o porquê da tristeza do lugar. Dei-me conta de que lá não era tão somente o túmulo dos vagalumes, mas também meu. Eu, fraca e pouco-iluminada alguma forma de Deus vagalume preso nas mãos. Nas minhas próprias mãos.

- A ausência é decorrente de uma coisa que eu chamo de síndrome de fragmentação. Só vinham ideias fragmentadas, difíceis de conectar. Pra síndrome, muita leitura e filme. Um dos filmes que eu vi foi a inspiração-chave para esse texto. Chama-se "Túmulo de vagalumes", conta a história de dois irmãos na Hiroshima pós-bomba. É de chorar. A frase final é uma adaptação de um amigo meu. Espero que gostem do meu maior filho. Amanhã um mês de blog. Talvez haja um post de aniversário. Obrigado aos que leem, mesmo os que se escondem. Onde quer que vocês estejam, espero que esses textos signifiquem algo. Beijos e até a próxima!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Olhos enxutos

         De olhos enxutos, a contemplar o vazio.
         Era um totem no canto do quarto mal-iluminado de abril.
         De olhos enxutos, tornava a sentir o que ninguém mais sentia. Era assaltado momentaneamente pela ideia de que o amor viria, de asas. E pousaria os pés sobre o tapete da sala de estar. Vermelho dos telhados das casas das serras. Lhe estenderia a mão tal qual pata de rei. Não para beijar em reverência, mas para levar dali, daquele inferno que lhe tirara a consciência das flores, do furta-cor, do furta-beijos. Beleza que encheria de cores o outono.
         E tornava a chorar, e tornava os olhos enxutos.
         Sono encasulado de teias.
         Sonho enxuto dos floreios shakespearianos. O pouco sangue que lhe corria nas veias não lhe permitia ousar grandes anseios. Sonho enxuto da aridez do outono. De matizes terrosas, bela sépia. Sonho enxuto máximo dos olhos enxutos enrugados que não mais dançavam procurando pelas estrelas da infância. Sonhavam, estáticos da morta eletricidade dos dedos.
         Sono encasulado de medos.

- Engraçado como um texto inteiro pode nascer de uma só frase. Experimentei pela primeira vez essa sensação com esse filho novo aí em cima. Espero que gostem. Obrigado pelo apoio imensurável. Aproveitem essa quinta-feira treze, porque, à meia-noite, por um milésimo de segundo, ela será sexta-feira treze.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Espelhos

Repetições. Uma sucessão de repetições. Como quando colocamos um espelho perante outro. Infindáveis reflexos de moldura vazia. É isso que somos. Dois espelhos, sem face, só desejamos. Sem olhos para ver o que refletimos, se tivéssemos sentimentos, só poderíamos tentar sentir. Sem alma para mergulhar no frio e vácuo sonho de vidro. É isso que somos. Dois reflexos, sem nome, sem sexo, só inveja.  Sem essência, só o veneno que nos cospem. Eu te reflito e você me reflete, refletindo o que antes eu refleti, ou seja, você mesmo, cometendo seus piores medos. Sem surpresas, sem opções, automática agonizante agonizamos – sem bocas para pedir socorro. Em silêncio, nada mudamos. Por toda a eternidade mudos, imutáveis, inertes em nossas plásticas imagens, fossilizados ao chão sem ter a oportunidade de, sequer, se banhar com a primavera que nos chama lá fora – como a ouviríamos sem ouvidos? Sem saber o gosto do vermelho das rosas em nossos vidros. Presente apenas a ausência escura do nada entre nós. Piores que o nada, somos o reflexo de nada no meio. Meio infinito no tempo – para que jamais esqueçamos de nossas condições de espelho. Espectros (ou reflexos de espectros?) que assombram um segundo não notado por ninguém.
Ninguém viu os espelhos. Ninguém lhes deu um reflexo de vida, de vaidade. Para sempre espelhos de si. Reflexos quebrados, inacabados – e infinitos.
Um dia estarão opacos de tanto refletirem a si mesmos. E, uma vez que nunca viveram, não morrerão. Deixarão de existir. Perpetuamente. 


Desculpem a demora pra postar, mas vestibular suga toda e qualquer inspiração. Mas passou. Eu sei que desse texto, pouca gente vai gostar. Saiu mais cru do que eu queria, e eu tentei dissolvê-lo em meus conhecimentos, mas em vão. Sei que tem gente que vai pensar que esse texto foi inspirado nelas, quando, na verdade, surgiu de um momento rápido - e foi rapidamente escrito. Por isso cru. O que faria um escritor se não pudesse depositar o mais puro do que sente nas suas páginas? Entendam. E obrigado pelas visitas e apoio.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Glorioso batismo do frio


           O batismo do frio é de uma palidez azul e doce.
         O frio é um véu do tamanho da imaginação. De seda fina e fantasmagórica, frágil e áspera. Parece glacial, mortal e, ao mesmo tempo, aconchegante - por ser véu, envolve, aconchega e não consegue ser frio cruel. É frio de iniciação. Não é de choque elétrico. Ele cresce dentro, às vezes rápido, mas sempre gradativo. Espalha-se, aconchega e, então, se esvai. Pulsante. Ressuscita dormente o que toca. Afia e hiberna – inicia para o que vem a seguir.
         Nasce preguiçosamente o primeiro sol do ano. Quase se pode ver suas bochechas rubras de vergonha, seu esforço em ser o nascer mais bonito. O recém-nascido sol é inocente e glorioso tal qual um imperador romano de dez anos. Ao surgir, ele nem precisa empurrar as nuvens, que fogem o mais rápido que podem, esguias e embaraçadas ante a sua presença – as nuvens escuras, pequenas cicatrizes no véu de frio que, antes azul, agora rosa, laranja e, por fim, amarelo, pintado pelo astro. Amarelo que só pode ser descrito pela essência mais sublime da estrela. Amarelo próprio dele, amarelo-solar. Um amarelo de brincar entre os dedos, de faixas vívidas na face. É possível sentir o som amarelo. Leve, suave e repleto. É vento – e o vento é mero coadjuvante, quando notado. Ecoa em cada um dos poros, cobre o arco-íris dos olhos semicerrados, banha a terra.
         O amarelo é calor e o calor é visual. O calor se enxerga, como fosse o sol de um gelo amarelo. Está na luz que fez do véu de frio, macio, da breve era glacial, era do sol. Calor tal brilho do falar dos anjos. O calor desse – e somente desse – sol marca o fim do batismo do frio e o início de um caloroso ciclo.
         Sinestesicamente memorável – uma memória com cor. Memória de um momento em que Apolo fora o deus dos deuses.

- Tive a graça de ter um momento assim. Difícil descrever a sensação, mas gostei de rir feliz. Valeu a pena passar pelo batismo (e sair com a garganta ruim). Se todos os nascer do sol forem assim, então o maior pecado da raça humana é dormir e não vê-los acontecer. Desejo que vocês tenham desfrutado de um segundo semelhante – ou que o façam em algum dia de suas vidas. Que 2011 tenha a glória de tal sol!