segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Teoria do tempo I


            O tempo é medido pelas memórias. Sem memórias, a sensação de tempo inexiste e, por conseguinte, o próprio tempo. Assim, uma pessoa que se lembra de absolutamente tudo envelhece mais rápido que alguém com uma memória randômica ou seletiva, ao passo em que alguém cujas memórias tenham sido afetadas por algum tipo de amnésia é mais jovem que qualquer um dos outros dois.
            Uma pessoa que adquiriu o esquecimento dos últimos, digamos, 15 anos de sua vida, sentir-se-á 15 anos mais jovem, o que faz da amnésia um privilégio. Se todos os registros históricos fossem apagados, incluindo a memória das pessoas, o passado deixaria de existir e a humanidade seria mais humana. O passado mora na cabeça do ser humano e no que é produzido a partir dele. Enquanto isso, o futuro sequer chegou e talvez nem chegue. O futuro é fé.
            Vivemos mais quanto menos lembramos porque não prendemos o tempo a nós, o que faz com que ele passe mais rápido pelos mesmos corpos. Ao mesmo tempo vivemos efetivamente menos, porque a sensação de que o tempo passou e nós o aproveitamos ao máximo é menor. Todos os seres humanos, juntos, possuem a capacidade de controlar o tempo. Podemos pará-lo, assim morrendo congelados, ou fazê-lo mover-se tão depressa que tudo morreria instantaneamente. De certa forma, o caos humano mantém o equilíbrio temporal.
            Durante o sono entramos em um estado de esquecimento quase total, por isso acordamos renovados. Quando envelhecemos, o próprio corpo tenta prolongar o tempo de vida encurtando a memória. Por fim, a amnésia completa é a morte, o que nos leva a crer que existe uma vida eterna após a morte e paramos diante do paradoxo de que a única forma de viver pra sempre é morrendo.


- Absolutamente nada literário.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Duas Gotas

            A água evapora e eu nunca mais a vejo. Você é como a água. Eu lembro que a água é três quartos de cada um de nós.
            Você evapora, mas não vira nuvem. Fica como vapor no espelho do banheiro onde desenhamos nomes e corações com os mesmos dedos com os quais desenhamos amor. O vapor que sai de dentro de mim em dias gelados. Você não vira nuvem, não vai para o céu, onde Deus possa soprar-te até perder de vista na curva do mundo. E, mesmo que virasse, você não voltaria com os Elíseos e cairia como chuva. Você tocaria a minha pele como neve.
            A água evapora e se torna ar, como o seu coração. Eu sinto o ar ao meu redor. Passa por dentro das minhas roupas, me olha os olhos, entra e sai de mim, ora calmo, ora violento, me balança e me deixa a vê-lo invisível. Escuto o som do ar, que bate em pulsos.
            A água congela e nunca mais é gentil. Você é como a água. Abre a porta para o inverno, que se põe entre nós dois. Transparente, nada se esconde em você. Ou você é, ou quebra. Quando te toco, você me rouba a vida aos poucos e me alivia. Se me envolve, me matará. Quando te olho, é como se visse ao contrário. Ver de fora dos olhos. Quando te ponho à boca, nos unimos e você não mais existe senão dentro de mim.
            A prisão é feita de gelo, mas derrete com a primavera.

            A água da vida. Você é quem me afoga.
            Então eu vejo que a água é o reflexo mais sincero do mundo.
            A vida da água. Eu me afogo em você.

- Agradecimentos à Yoko Ono que entrou na minha vida de forma completamente inesperada e surpreendente. Esse texto é todo ela. Espero que não liguem, estou numa fase de projeção, de receptor. Você, você, você... quem?

domingo, 22 de maio de 2011

Ode ao guardador de rebanhos

            E, como num susto cansado qualquer, eu acordei. Exausto de sono, vi que o sono precisa de algumas horas de vida para cumprir seu nome. É engraçado ver como, de fato, essa dependência entre opostos existe e funciona. Por que Deus haveria de criar opostos? Era como se previsse o conflito, como se o conflito sustentasse o Universo. Se isso fosse verdade, o caos faz a ordem das coisas e, no dia em que só houver ordem, não haverá caos, não haverá ordem, não haverá coisas e, sem coisas, ninguém acreditará num deus caótico ou em deus algum, que também não haverá. Era isso: Ele nos pôs em conflito para sustentar a Sua existência, pois, se não há nada a saber que ele existe, como Ele poderia existir e para quê existiria? Deus é tão frágil quanto uma borboleta, se erra o caos do seu bater de asas, cai; e é menor que o vazio que Ele criou para ter onde bater Suas asas.
            Então me lembrei do guardador, que dizia que o sentido íntimo das coisas era não ter sentido íntimo algum. Vi que colocava os pés por debaixo das cobertas como se houvesse frio, sem haver qualquer um. Vi que deitava tal qual feto, sem querer, só o fazia, sem pretensão de voltar ao útero de minha progenitora. Vi que tinha uma borboleta aos dedos e, maravilhado, perdi o encanto, pois nada mais era do que um inseto em mim. E tentava entender as borboletas como quem tenta entender Deus e tentava entender Deus como quem tenta entender as borboletas e si próprio. E vi que pensava sem ver que nada havia para pensar e que ver sem pensar era viver. Vi que perdi minha vida ao pensar sobre a vida e sobre outras coisas que eu não via. E, assim, mantinha o bater de asas de Deus, que nada queria ao criar as coisas senão dar a ilusão de que elas eram mais do que coisas, assim criando o conflito entre ilusão e realidade, que nada mais é do que seu grande coração azul e divino.
            Não.
            Não havia nada disso. As coisas criaram a si próprias e assim tem de ser por que assim é. E se Deus existisse e tivesse coração, seríamos todos feitos de sangue. Eu e a Natureza, irmãos de sangue.
            O guardador, que me põe para dormir da vida. Não. O guardador não o faz porque Ele só existe nos meus livros e na minha vontade, que nada mais é senão nada.

- Acho que passo pela pior brainstorm da minha vida, mas não ligo, estranhamente. É bom parar e contemplar. Enfim, depois de ler muito sobre o guardador de rebanhos, eis que eu entendi o que ele queria dizer quando não dizia nada. Não sei se esse texto me é fiel por inteiro, mas, decerto, é fiel a alguns momentos meus. Espero que vocês tenham paciência e me entendam não como uma máquina de escrever, mas alguém que escreve quando julga necessário, assim como eu os entendo como pessoas que leem quando necessário.

sábado, 30 de abril de 2011

Confissão - como se eu fosse deus

            Eu já não sou o que me forma ou tão somente isso. Eu desaprendi a função do meu nome. Busco-me no que me foi tomado e no que ainda não me foi dado. Já não me acho no presente ou talvez nunca tenha me achado. O presente não existe, por isso me sinto no futuro. Projeto-me para o seguinte, o que eu sei que é, foi.
            Não posso dizer que andei muito por aí, mas estive em vários lugares, com várias pessoas, dentro delas – apesar de que poucas estiveram profundamente em mim para, de fato, estarem em algum minuto do meu tempo. Vi muitas coisas, me maravilhei de algumas, todas as vezes sem muita cor nos olhos – me horrorizei de outras e em todos os estágios do horror, sempre diminuído diante da miséria alheia ou da minha própria.
            Hoje eu não sei o que faço. Será que fico ou que passo? Nada me salta aos olhos ou inquieta  minha respiração. Tudo parece chato ou fácil ou ainda previsivelmente triste. Como se eu fosse deus e vocês os humanos e eu visse que no futuro de cada um há somente o pranto, mas que, independentemente de qualquer coisa, eu passarei inalterável. É uma segurança tão grande que se faz falsa no mais primeiro segundo de conforto. Só o que eu escuto são repetições e depois um grande eco reto. Já vi tudo isso e sei que, lentamente, passo para o outro lado, mesmo que de forma involuntária, com um contra-sorriso nos lábios.
            Me desculpe por você ter visto ou ouvido aquilo – aquele eco, aquela mancha. Mas hoje eu consigo finalmente dizer não para você. Dizer nada.
            Em queda livre. Completo. Eu só tenho uma falha: eu não sei para onde caio.

- Antigo. Postei na saudade. Passando pela maior brainstorm da minha vida.

sábado, 9 de abril de 2011

O escuro pessoal generalizado


            Não há linha na escuridão. Não há ponto na escuridão. Não há formas ou meios na escuridão. Mas há, sim, todas as linhas, pontos, formas e meios de se fazer escuro.
            A gente tem medo do que é bom porque teme que um dia acabe. A gente ainda não se acostumou no eterno porque teme o que é maior que a gente. O eterno é grande demais para as nossas cabeças e pequeno demais para as nossas vontades. O eterno não cabe nas nossas vidas e nas nossas vistas, por mais que elas mirem o horizonte e não o horizontal.
            A gente precisa ser feito de algo e tem que ser bom. A gente não suporta ser feito de nada, ao menos um segundo passar e não mudar nada. A gente quer fazer a diferença, mesmo que para pior. A gente precisa ver que o mundo é feito, ao menos um pouco, de cada um, mas a gente esquece que não somos feitos da gente o tempo todo.
A gente tem um pouco dos animais que cultivamos e sentimos medo. A gente tem um pouco do que tem nas mãos, quase sempre sujas, mas nunca vazias. A gente tem um pouco dos outros e de nossas memórias com eles e, quanto mais forte a gente queria que essas memórias fossem reais, maior é esse pedaço. A gente tem a fé de que vai mudar um dia, só não sabe pra onde e nem a partir de onde, pois a gente não sabe que gente muda na gente.
A gente tem uma linha, mas não tem um ponto. A gente quer ter um meio sem ter uma forma. A gente está completamente perdido na escuridão. E é só isso que a gente tem: o escuro, para dele criar claridades de onde tirar linhas, pontos, formas e meios de ficar, de alguma forma, fora dele, debaixo de alguma luz.
Só que a gente não sabe de uma coisa: não há o lado de fora do escuro. O escuro é tudo o que a vista não alcança e a vista não é eterna. Quem pisa na borda do escuro sente dor, mas quem vive dentro do escuro é feliz. O escuro que a vista não vê e que não cabe na vida da gente.

- Queria ter postado esse texto antes. É um texto que eu deixei amadurecer por opção, mas que eu sinto que passou do ponto. Ainda assim, tem certa validade. Espero que gostem. Acho que não voltei, acho que não volto. Eu estou indo por novos caminhos.

domingo, 3 de abril de 2011

Diante de mim não estou

            Descobri que, para escrever, devo me permitir sofrer. Parece óbvio há algumas vidas, não sei ao certo, só sei que faço – e funciona como quando eu te encontrei e você me encontrou e nós nos encontramos falando coisas bonitas e sem nenhum sentido, mas que funcionavam perfeitamente para nós – não sei quem éramos nós, acho que tínhamos todas as ambições do mundo, nenhuma e, ao mesmo tempo, a maior.
            Só que chega uma hora em que não precisarei mais me permitir sofrer. O meu sofrimento é que me permitirá alguns momentos de amnésia, alguma calmaria, tudo de forma bem tirânica – me permitirá um descanso do lápis e do papel.
            Minha paz tem prazo de validade. Acho que quem vive de paz infinita é santo e eu bem sei que pequei inúmeras vezes com a intenção vil de pecar. Mas santos escrevem, e escrevem coisas bonitas. Eles devem se inspirar no sofrimento dos outros, já que eles próprios não sofrem. Então a dor dos outros é bonita? Acho que sim. Quando me olho diante de meu reflexo e escrevo, só vejo monstros e demonstrações. Deve ser porque o que há dentro de mim de bonito nada tem. E eu sou outro de dentro do espelho. A agonia do meu outro eu me satisfaz e assim me condena.
            Gosto de me escrever para apagar depois. Não gosto do que fica. Prefiro não me explicar, então já nem sei bem o que é isso que faço. Tenho seqüestrado e assassinado cada expressão minha que aprisiono. Talvez me cito de forma egocêntrica, penduro meus quadros vitorianos pela casa, me visto das mais belas indumentárias e poso, diante do espelho, me clono e me escrevo. Nada eternizo.
            Quero um saco plástico e uma corda. Quero que alguém ponha minha cabeça dentro do saco plástico e amarre o meu pescoço com a corda, de forma a vedar a mim, ao plástico, ao saco e à corda. Quero respirar o que vem de dentro. É isso: só quero o íntimo, o visceral. Quero me sufocar de alma e fugir dos reflexos que eu persigo.


- Nunca demorei tanto pra postar. E, quando posto, não sou mais eu. Eu vi isso. Será que mais alguém verá? Obrigado aos que mantiveram sua paciência comigo e leram esse texto. Ele, de alguma forma, me marcou. Espero estar de volta.

terça-feira, 15 de março de 2011

A partida

         Eu nunca paro. Eu nunca parto. Eu sempre fico, sempre ficam em mim. E fica em mim o revés da vontade de não realizar, de não ser real.
            Se eu não posso ser a lua que alta vive e brilha inteira em todos os lagos e todos os olhos, então que eu me faça uma fagulha de alma que ilumina os poços de lama seca e os bueiros. E que eu viva baixo, aos olhos dos homens e das pedras.
            Nas mãos, o silêncio visceral das palavras que não falam e, na cabeça, o silêncio etéreo do tempo. Suspira no ar silencioso um único barulho, o da tinta cortando esta página, tatuando um verbo em lugares inexplorados.
            E é com a garganta presa em grito e os braços preso em carne desabraçada que eu bato os sete cantos do meu ser, minha prisão. Quebro todas as janelas, todos os vidros, os metais e as existências manequíticas. E nunca saio. Me visto de mim diante do buraco de liberdade que se abriu em todo o meu redor. E nunca saio, tenho medo de pular de dentro do vácuo para fora de si, no interior de algo que tenha conteúdo e se mensure por si só. Pois tudo aqui dentro foi comprimido e empurrado para o avesso de fora da essência e o vácuo completa as lacunas com uma eficiência tão intangível quanto única.
            Tenho medo de cruzar a moldura, passar sobre o abismo rumo à estrela. É que nunca sei se o céu é negro o suficiente para vermos os astros e se temos o bastante deles para sonhar. E, ao mesmo tempo em que os cacos voam para onde moram o fogo e as sombras, eu queria que tudo pudesse dispor de um pouco de nada para ser, enfim, completo.
            Não registro a partida. Não vejo beleza. Tenho medo.

            Onde eu faço a minha casa é onde a minha casa é. E nenhuma casa me trará tanta saudade quanto você, que foi minha sala, meu quarto, minha cama, meus lençóis finos – sem deixar de ser meu teto e meu chão e, ainda assim, sem alturas e profundidades quando para sonhar e para viver o sonho.
            Hoje eu te amo, mas eu não te quero mais. Eu quero o seu ser, eu quero ser você, abrir mão de mim, te sentir vivendo em cada eu que existe. E, se eu sou uma mistura pálida de tudo o que você ama com uma pitada de seus ódios, por que você ainda não é inteiro em mim?

            Não registro a partida.
            Assim dou adeus a minha casa para, então, voltar a um não-sei casa ou olho-da-rua, mas certo de que um pedaço de mim seguramente está em casa. E é essa certeza que me deixa em pé, batendo portas à procura de mais um lar.

- Não estou bem (pelo menos não como escritor). Não tenho sentido e é difícil escrever quando não se sente (daí a demora). Esse texto já tem uma certa idade, então talvez se faça menos compreensível pra mim do que pra vocês. Mas não pode ser ignorado, é importante e marca a última coisa que senti nos últimos dias: saudade. Espero não demorar a voltar a escrever para mim e para vocês, mas não é algo que eu sou capaz de controlar.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Conde

            À noite, me exorcizo. Sozinho, calmo e confiante de que sou mais glória do quem que me habita em minhas fendas e buracos escuros de medo e solidão. Peço às divindades e aos orixás não sorte. A sorte é acaso demais para uma vida que caminha por areias de rolar-dados e girar-roletas de felicidade. Quero mais dois minutos de lucidez para ser capaz de sentir a luz do sol sem precisar fechar os olhos e quero a compaixão de quem olha por mim. Compaixão de quem lida com algo mais frágil que um humano. Atravessa despido por uma nevasca, atrás de que? É tanto vento, tanto gelo, tanto frio que ninguém jamais veria além da intempérie, a bonança.
            Até ontem eu me desfiz em sangue para você beber, vampiro de mim e tão somente eu. Esse sumo tão doce que te enjoa no fundo da alma vã e das palavras. Se contemplava o teu rosto a vomitar em mim tudo o que sou, tentei fazer-me mais saboroso, de modo a ser o melhor banquete de teu mundo. Era o que eu queria. Já que não teria o seu amor, que tivesse os seus dentes cravados em meu pescoço, a sua luxúria sombria a me corroer as veias, tóxica – e indescupavelmente deliciosa.
            Tinha medo de me tornar vampiro de ti.
            E então parou. O sangue acabou? – finalmente.
            Agora voa atrás de novo sangue. O que sou se resume em minha carcaça flácida de vontade e meus farrapos sujos que já não me servem. E não há desespero em minha pele. Recolho os cacos que sou, olho o mais alto que meu arquétipo de esqueleto permite sustentar e, num espaço triste de sábia loucura, vou atrás do que me tomaram: meu sangue. Cada gota, cada vermelho. Mas não quero do mesmo. Quero sangue novo, mesmo que para isso eu me vista de vampiro de outros, eu me vista de você! Quero sangue novo para ser à prova de tudo que me fez sangrar. E um dia, vampiro que voa e me abandona, um dia eu te amarei por ter me feito fênix de sangue. Mal saberia eu que veria toda a plenitude de tua humanidade e me descobriria surpreso ao saber que ela se faz tão vasta a ponto de me vestir da cabeça aos pés melhor do que a ti.
            Então fecho os olhos e vejo que o que me espera depois da nevasca crucis é um cálice de vinho tinto.

- A última gota. Um parto tão limpo, tão fácil e sem sangue. Não há mais em mim, acho. Veremos se haverá um dia. É o filho mais despido de tudo e limpo que já nasceu. Tanto que se parece comigo mesmo. Espero que entendam. Talvez demore a surgir outro texto, embarco em viagem em menos de 4 dias. Mas a demora sempre traz consigo novas e belas inspirações e não será diferente dessa vez. Muito obrigado por tudo, leitores!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O erro

            Hoje eu não fugi de mim, apesar de que foi me dito que, só assim, eu me encontraria.
            Hoje eu não fugi de mim, eu me persegui em cada instante incansavelmente cansativo que ama os ponteiros do relógio. Esse eu que me foge, se tem nome, faz-se tão furtivo que seu nome ficou na boca de alguma esquina. Já não mais sinto se ele está aqui ou se já foi. Talvez nunca tenha estado. É que está no âmago das intenções e dos gestos, eu só queria uma companhia, a mais dentro de mim possível. E, se feita de costela minha, traria consigo um brilho todo único, todo o brilho dos meus olhos nos olhos da alma dela. Ah, mas me adiantaria algo assim encomendado dos meus sonhos se não foi feito para mim?
            Não me julguem. Eu sei que, debaixo dos cílios, trago o olhar crítico dos infelizes, mas, se o faço, é porque não quero mais quimeras no meu quintal. E, se eu sei o quanto isso pode ser defensivo, também só sei eu o quanto isso destrói a pouca humanidade que mantêm meus ossos de pé. Porque as quimeras têm sim a sua beleza, que olhar crítico nenhum verá, na imperfeição de suas formas. E eu bem sei que optei pelo bucolismo que jaz nos gestos contidos, porém seguros.
            E eu não quero que os outros sejam como eu e, se não o podem, que sejam então quimeras a voar e a rastejar por entre meus dedos, sob o meu olhar. Só não sei se o quero porque abomino tanto o que há em mim que não desejo para ninguém ou porque eu amo tanto o que há em mim que eu não desejo para ninguém.
            Se eu os olho com olhos de fulminação, a mim o olhar mata antes de visível. A vergonha não desce com as lágrimas, permanece viva entre as pálpebras e em todo o vão imenso, girando e girando risonha, encara-me através do reflexo do espelho que se reflete em meus olhos. Ela me acha bonito, porém miserável. Ela me chama de miserável. E eu enxugo as lágrimas e sorrio, porque ela está certa.
            Que anda a fazer a vergonha de teus olhos senão o trabalho dela?
            A mim, perturba-me tanto a ideia de errar na respiração, de ser errado, que não mais me permito ser quimera. Mas não me ensinei a ver-me com a perfeição de não ser quimera, então, diante dos meus olhos, eu ainda sou. E diante de vossos olhos, por usar essas vestes estranhas, eu me faço assim. Porque, na busca pelo ser, passa-se também pelo não ser. O morrer.
           
            -

            A água tem mãos de tocar os dedos como ninguém. E ela os toca e eu bocejo. Bocejo no alto das nuvens para as trevas que vivem acima e abaixo de mim. Porque já passou, tudo passou de novo e passou mais uma vez. Agora são outros seres, outros quereres e outras quimeras. Para olhar com os olhos fechados, de dentro das trevas e, mais uma vez, bocejar à sua passagem.


- Não lembro bem como saiu esse texto. Mas saiu sem muita força. Espero que gostem, soa como uma confissão e talvez seja uma. Obrigado pelas visitas e pelo carinho.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Carta de suicídio por Y.S.


            Querido: sinto a certeza de que voltarei a enlouquecer mais vívida do que nunca, suas unhas arranhando cada terço de minha pele, numa agonia e angústia só não maiores que minha dor de senti-las. Sinto que nós dois não poderemos passar por mais desses momentos difíceis, nos quais você arrisca a maior beleza da sua lucidez para me manter ereto na minha lúcida corda bamba. E eu sei que, se eu cair mais uma vez, eu não poderei me recuperar.
            Eu comecei a ouvir vozes, a ver alucinações, a sentir calafrios cortantes, todos me acusando dos mesmos pecados que você, tão nobremente, já perdoou. E eles não mais me permitem total concentração na minha arte, que nos mantinha afastados, mas íntegros, seguros em nossos casulos e distâncias.
            Então estou fazendo o que parece ser o melhor a fazer: quebrar o meu casulo e não mais esperar que ele apodreça ao lento pesar dos tempos. Pular dessa corda bamba rumo ao abismo e não mais esperar que um sopro de acaso me derrube numa hora, talvez, inapropriada. É que não temos tempo porque nunca demos tempo. Então sejamos rápidos.
            Você me deu a maior felicidade possível, não aquela que nunca acaba, mas a que sempre começou. Você foi, em todos os sentidos, mais do que qualquer outro poderia ser. E mais do que ser, você quis ser mais, quis ir além. Além até de si.
            Sei que estou arruinando egoisticamente a sua vida – veja pelos muitos “minhas” no começo dessa carta. Você estava certo quanto ao meu egoísmo e, talvez, eu esteja fazendo isso porque seja mais fácil para mim e não para nós. Julgar a mim mesmo numa hora dessas é de um alívio que eu não poderia supor, deixar pesares e monstros num pedaço de papel como este, que não irá comigo depois que eu –
            Sei que estou arruinando a sua vida e que, sem mim, poderá voltar a trabalhar. E voltará. Eu sei. E isso me conforta e me faz sentir-me mais certo diante disto que faço. Veja só, não consigo sequer escrever adequadamente, como a ocasião propõe, logo isso que fui dito fazer tão bem. Sempre enfadonho e cíclico e delongante, deve ser uma tortura para você me ler agora, tortura pior do que me ver depois que eu –
            O que quero dizer é que eu devo a você toda a minha felicidade, aquela escondida nas minhas brechas de sanidade e que eu mal deixava transparecer em sorrisos – e nem sei ao certo porque fazia isso. Você tem sido inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom durante todos esses anos, com uma devoção tamanha que me faz sentir vergonha de mim mesmo agora.
            Tudo está acabado para mim exceto a certeza da sua bondade. E essa deve ser a única certeza viva desse mundo.
            Tomei essa decisão do momento em que vi que seu trabalho estava afetado por minha causa. Não podia continuar mutilando a sua alegria de viver e, para que isso se fizesse possível, queria ter terminado isso de forma menos dramática e dolorosa, mas não houve como. Queria que não houvesse cartas e eu simplesmente tivesse desaparecido no ar que ainda respirava e nas memórias que você respirava, mas ainda não era feito de inexistir. Queria ter pedido desculpas, mas que adiantaria tê-las pedido quando o que fiz era a única opção que tinha?
            Eu não creio que duas pessoas possam ser mais felizes do que nós dois fomos.

- Quem viu "As Horas" sabe que a base desse texto é a carta de suicídio de Virgínia Woolf no começo do filme, que eu achei simples porém fantástica. Deu vontade de trabalhar em cima dela e saiu esse filho. Espero que gostem.